Desossando

Desossando

por

Preston Kullingher

 

Já eram quase 10h da noite.

– Ei caras, cadê vocês?

– Nós já estamos chegando.

– Já são quase dez horas…

– Você ta indo varrer lá? A gente ta indo muito cedo.

– Cedo nada. Eu quero ver aquela banda…. Parece que ela vai ser a segunda.

– E tu ta indo pra ouvir a banda?

– Bom, na verdade não. Mas é melhor beber ouvindo uma musica boa.

– Eu to indo pra encher a cara.

– Eu também, eu também. Quero tomar todas hoje. Tá vindo tu e quem mais?

– [rindo] Tu não vai acreditar.

– Quem?

– Quando você ver a figura, garanto que vai rir.

– [risos] Ei a galera vai vir mesmo?

– Não. Nenhum deles. Eu liguei pro Raposa, ele disse que não dava pra ele. Liguei pro Cara de Sapo, tá sem grana total. Liguei pro Fantasmão ele disse que ia quando saísse do trabalho…

– O Fantasmão sempre fura. Não dá pra confiar nele.

– É.

– Ei, mas quem é que ta vindo contigo? Tu foi falar, agora fiquei com vontade de saber.

– Cara, eu tava indo no caminho de casa, tomar um banho e me vestir pra ir. Ví ele  e falei, daí ele disse que ia também e eu aproveitei e chamei  pra vir comigo porque eu não gosto de pegar ônibus só.

– Ei, mas tu já comprou a bebida?

– Eu tô levando um litro.

– Eu também comprei um litro. E o refri?

– A gente compra ai mesmo.

– Caralho! Dois litros, a gente vai ficar muito doido.

– A intenção é essa. Hoje eu quero ficar muito doido.

– [rindo] Ei, mas diz ai quem ta vindo contigo…

– Cara… o TacTara.

– Quem?

– O Tactara.

– O Tactara?

-É.

– [rindo muito]Caralho véio, não acredito. Dessenterou.

– É. É. Ele mesmo, desenterrado. Comédia aqui no ônibus. Quase não deixam a gente subir pensando que a gente ia era roubar o ônibus.

– Imagino.

– O pior é que o Tactara tá com a camisa do (time de futebol) parece até que tá indo pro estádio.

– kkkkkk. Oh comédia.

– Ei, a gente já ta chegando. Desligar aqui.

– Beleza.

 

Chegaram. Desceram do ônibus segurando o saco de compras do supermercado com o litro dentro. As pessoas nas janelas do ônibus olhavam para os dois com cara de nojo, umas internamente agradeciam a Deus por eles não terem roubado ninguém. Na verdade não eram ladrões, apenas pareciam.

O outro esperava na entrada da casa de shows. Fumava um cigarro encostado no muro, o litro no seus pés.

– E ai?

– E ai? Beleza mano? E ai Tactara?[rindo]

Tactara

– E ai meu brother. Tudo na paz?

– Ei cara[rindo]coloca esse litro no saco. Queima nosso filme ficar mostrando assim...

– Eu não tô nem ai. Ei, vamo logo comprar o refri que eu tô afim de começar os trabalhos.

– Bora, bora. Eu também tô.

Foram os três em um mercadinho em frente a casa de shows e compraram um litro de refrigerante sabor laranja. Depois voltaram para a frente da casa de shows. Como não podia entrar no show com bebida alcoólica, ficaram exatamente na frente do portão de entrada bebendo e olhando as pessoas que chegavam para o show. Havia muitos casais, muitos solteiros iguais a eles e também muitas meninas solteiras. Umas poucas bonitas, muitas feias e dezenas muito pior que feias. Era festa de pobre que mais tarde com certeza a polícia iria fazer uma batida por lá pra resolver algum problema ou pra prender algum traficante peixe pequeno que estava lá curtindo, dando bobeira.

Depois de umas duas horas do lado de fora bebendo, conversando, tirando selfies e falando gracejos para as poucas bonitas que adentravam a festa:

 

– Já são quase meia noite. A primeira banda acabou. Vamo entrar?

– Vamo, vamo. Eu já tô muito doido aqui.

– E ai Tactara?

Tactara

– Por mim, vamo entrar. Eu já tô muito doido também.

– Pois fechou. Vamo só virar a última pra terminar o litro e ai a gente entra.

Brindaram. Viraram cada um o seu copo, cheio até a borda. Fizeram cara feia pois o refri já não tinha mais, então a dose saiu quase pura.

Foram revistados até os cabelos e depois de nada encontrado, entraram. Felizes.

– Tá lotado. Não pensei que tivesse tanta gente.

– É mesmo. E lá fora a gente nem viu tanta gente entrando assim.

– Eu já tô vendo tudo meio dobrado.

– Ei, eu vou chegar naquela gordinha ali. Acho que ela tá olhando pra mim.

– Quem?

– Aquela ali, de azul. Do lado daquela gordona de branco.

– Eu não tô vendo nada. Ah, sim. Aquelas duas ali. As duas são gordas. Tu vai chegar em qual?

– Eu vou chegar na de azul, menos gordinha. Ela tem o rosto bonito. A outra é muito gordona.

– Beleza, beleza. Pode ir lá que eu vou ficar aqui com o Tactara.

– Vamo comigo! Fica mais fácil pra eu conseguir a de azul. Qualquer coisa tu fica só conversando com a gordona.

– Não, não, pode ir. Tenha fé que vai dar certo. Eu vou ficar por aqui mesmo.

O outro saiu cambaleante na direção das duas meninas que se assustaram com a chegada dele. A mais gorda ficava puxando a amiga para que elas duas saíssem. Mas como ele era bom de papo, a gordinha de azul ficou conversando e, pouco depois, estavam se beijando.

Quando o primeiro levantou a vista para tomar fôlego viu o amigo atracado com a mais gorda, a de branco, beijando-se loucamente. Ela, por seu porte mais avantajado, escondia-o num abraço. De fato que, quem estivesse por trás dela não conseguiria vê-lo. Tactara continuava lá parado olhando a multidão, ora cruzava os braços, ora colocava as mãos nos bolsos da bermuda. Era um cara legal. Apenas não podia vacilar com ele.

Depois de ficarem com as meninas os dois ganharam o salão. Se dispersaram na multidão. A bebida já fazia efeito. Dançaram, ficaram com outras meninas, fizeram presepadas, se divertiram. Por fim, o segundo encontrou-se com Tactara. Eram umas 3h da manhã e muitas pessoas já haviam ido embora.

– Ei Tactara tu viu o 01.

Tactara

– Vi não.

– Já ta tarde. Daqui a pouco vai ficar perigoso pra gente voltar pra casa. Vamo sair fora.

Tactara

– Soh. Espera só ele voltar. Pra gente não deixar ele no fuguete.

– Beleza. Eu vou dar uma circulada vê se eu acho ele.

 

Depois de um tempo 02 voltou.

– Ei Tactara eu encontrei ele. Tá sentado encostado no muro perto dos banheiros dormindo.

Tactara

– Bodou.

– Certeza. Eu tentei acordar ele, mas nada.

 

Os dois chegaram ao local onde o primeiro se encontrava. Estava muito alterado pelo efeito do álcool de maneira que não conseguia falar direito, nem ficar de pé. Os dois amigos falavam com ele mas ele apenas balbuciava palavras sem sentido. Algo próximo de um coma alcoólico.

– Ei Tactara bora levar ele. A gente não pode deixar ele aqui senão vão ganhar ele.

Tactara

– Soh.

Um pegou pelos braços, o outro pelas pernas e saíram rebocando ele como um leitão recém abatido. Já do lado de fora, na parada de ônibus conseguiram deixá-lo em pé, com um de cada lado escorando para ele não pender para um dos lados.

Tactara

– Tá parecendo aquele filme do morto.

– Um morto muito louco.

 

Ambos riram. O ônibus chegou e foi aquele estouro de boiada. As pessoas se pisoteavam para entrar, umas empurrando as outras, as meninas reclamavam, os caras escondiam as carteiras dentro das calças e, os dois no meio disso tudo, tentando erguer o morto muito louco para dentro do ônibus. Uma loucura geral. A porta se fechou e as pessoas espremidas na parte de trás. O cheiro de suor e perfumes baratos empestava o ar. De repente, peidaram. As meninas, como sempre, reclamaram. Uns  moleques gritavam ofensas para o motorista lá na frente, algo como ele estar transportando pessoas e não sacos de merda. Todos riam. O motorista dirigia como um louco, era a última viagem da noite e ele queria  chegar ao final da linha pois o pessoal da empresa estava jogando dados apostados. Dentro do ônibus 02 havia deixado o peso morto do 01 pra lá e já estava ficando com outra menina, mais bonitinha, de cabelos louros. O ônibus foi esvaziando, a menina de cabelos louros desceu e só ficaram os três dentro do coletivo. 02 conversava com Tactara sobre as coisas que haviam rolado na festa. Chegaram ao fim da linha.

– Ei Tactara tu pode levar ele até a casa dele, fica mais perto da tua do que da minha.

Tactara

– Tu deixou o peso morto todo pra mim né, esperto?

– Tu ta melhor do que eu Tactara, faz esse favor, irmão.

Tactara

– Beleza. Vou fazer na moral.

– Valeu parceiro! Você é um cara limpeza.

Tactara

– Soh.

No outro dia.

– Ei cara, valeu pela condideração.  Quem tem vocês como amigos não precisa de inimigos.

– Tá ficando doido? Eu te encontrei no chão sentado perto dos banheiros parecia um mendigo. Eu e o Tactara te carregamos até a parada. Depois tivemos o maior trabalho de te colocar dentro do ônibus que tava a maior putaria…

– Vocês deixaram os caras me ganhar. Levaram o restinho de grana que tinha na minha carteira, meu tênis e meu cinto, bem novinho que eu tinha comprado anteontem.

– Conversa? Eu vi tu de tênis na hora que eu desci do ônibus.

– Me ganharam. O tênis eu nem faço questão porque já tava gasto, mas o cinto tava novinho.

– O Tactara foi quem te deixou em casa…

– Tu ta ficando doido? Tu deixou o Tactara sozinho ir me deixar em casa?

– Deixei. Eu tava cansadão. Caraca, será que o Tactara te aguentou hein? [rindo]

– Ele é gente boa, limpeza mesmo, mas tu sabe a fama dele.

– [rindo muito] Caraca véio, o Tactara desossou mesmo…

Dias depois o Tactara desfilava com um cinto novo, segundo o próprio, comprado na feira.